Boca Livre e Negócios
As festas de fim de ano das empresas são certamente um tipo de Boca Livre muito apreciado, pois dão aos funcionários o gostinho de, pelo menos uma vez por ano, estarem levando alguma vantagem à custa do patrão. O atual paroxismo capitalista tende a sufocar as formas tradicionais de Boca Livre, enquanto fomenta a Boca Livre corporativa.
Boa parte soa seminários do prof. Freiermund, dos quais eu, Basileu, tenho a franquia no Brasil, se destina ao treinamento de executivos. Eles procuram na Sociologia Eleuterostomática, em primeiro lugar, um bom desempenho em todas as modalidades de Boca Livre que sejam diretamente ligadas aos chamados setores produtivos (como se só eles produzissem, e ainda por cima quem produz alguma coisa são os empregados deles). Isto inclui não só as festas de fim de ano empresariais, como os jantares e os almoços profissionais, e até a horrenda instituição dos cafés da manhã de negócios.
Realmente, se há uma refeição que merece sagrados conforto e privacidade, é o café da manhã. Ele existe para ser saboreado em casa, com muita calma, talvez de pijama, ou, na pior das hipóteses, com roupa bem confortável. Sair de casa, ou mesmo do hotel, em jejum, para discutir negócios, é algo revoltante, que deveria ser proibido pela saúde pública. Se for de gravata, pior ainda, mas quem se dispõe a usar esse sufocante adereço já não tem mesmo muito apego ao conforto.
Recebi, a propósito, o seguinte comentário do velho amigo Manuel Rui Pontes:
Basileu, estás a reclamar de barriga cheia, literalmente. Menos-mal quando o pequeno-almoço a negócios é em países onde essa refeição é farta nos hotéis, como o Brasil, a Alemanha, os Estados Unidos ou a Inglaterra. Pior era cá em Portugal, e também em Espanha, França e Itália, onde o pequeno-almoço, mesmo em hotéis melhores, se resume a um café com leite, um cacete, manteiga e, quando muito, geleia. (E atenção, brasileiros: cacete, para nós, é um pãozinho!) Mas a americanização da Europa pelo menos tem servido para melhorar os desjejuns dos hotéis nos países euro-latinos.
Boca Livre e Romance
Consulta-nos uma leitora:
Concordo totalmente com o professor Basileu a respeito do café da manhã... gostaria de frisar a importância social deste, inclusive da conotação sexual que tem o “café na cama”, sempre que é mostrado em filmes, novelas e até em livros. Talvez seja um resquício da época em que o homem “comia” e depois era a vez da mulher, cada um provendo sua parte no relacionamento. Talvez não tenhamos mudado tanto assim, já que ainda cabe ao marido o papel de provedor e a mulher o papel de defender a toca, apesar de todo o avanço feminista. Gostaria de aproveitar a deixa e pedir ao ilustre professor que discorra um pouco sobre a importância da boca livre nos relacionamentos românticos... que ao meu ver seriam o ponto mais delicado de uma boca livre. Por exemplo, o costume de que o homem pague a conta.
Respondo à leitora que realmente há muita relação. O professor Freiermund disse o seguinte, no Livrinho Dourado:
A mecânica da evolução torna alimentação e sexo indissoluvelmente associados. Um promove a sobrevivência do indivíduo, o outro a da espécie, e ambos as dos genes. Quando essas forças se alinham, os genes multiplicam seu potencial de replicação; e os indivíduos bem sucedidos nesse alinhamento passam esse traço para as gerações futuras.
Não admira, pois, que ao longo dos milênios, o elo entre cama e mesa tenha adquirido tanta carga simbólica. Refletida, inclusive, no uso de termos alimentares como metáforas sexuais, que ocorre em muitos idiomas.
Conforme muitos estudos eleutrostomáticos, o investimento dos caçadores primitivos em Bocas Livres para a comunidade retornava de várias maneiras, e uma delas era a colheita de fêmeas de boa parição. De reforço em reforço dos padrões genéticos, consolidou-se ao longo da História a textura das relações primitivas, na qual o homem é tradicionalmente patrocinador de Bocas Livres, e a mulher, usuária.
Naturalmente, há variações. Sendo animal social, o homem é usuário das Bocas Livres dos amigos, vizinhos, colegas e aliados, embora sempre se espere dele seu quinhão de patrocinador. A mulher, por outro lado, quando avança de status a ponto de tornar-se matriarca, marca essa poderosa posição com as Bocas Livres mais memoráveis, principalmente porque matriarcas costumam sobressair-se pela qualidade da culinária, ou comandar cozinheiras que o façam.
Mas o relacionamento mais decisivo e fundamental, que é o relacionamento a dois, o par romântico, permanece, até os dias de hoje, como the ultimate Free Lunch. No mais das vezes, como o macho como patrocinador e a fêmea como usuária, embora haja inversões ocasionais, e o padrão se observe mesmo em casais homossexuais.
Naturalmente, como toda Boca Livre, só é de graça na psique das partes. E sobre as maneiras de retorno, acho que não preciso elaborar mais.