sexta-feira, 16 de março de 2012

A Boca-Livre no Cotidiano

Boca Livre e Negócios

As festas de fim de ano das empresas são certamente um tipo de Boca Livre muito apreciado, pois dão aos funcionários o gostinho de, pelo menos uma vez por ano, estarem levando alguma vantagem à custa do patrão. O atual paroxismo capitalista tende a sufocar as formas tradicionais de Boca Livre, enquanto fomenta a Boca Livre corporativa.

Boa parte soa seminários do prof. Freiermund, dos quais eu, Basileu, tenho a franquia no Brasil, se destina ao treinamento de executivos. Eles procuram na Sociologia Eleuterostomática, em primeiro lugar, um bom desempenho em todas as modalidades de Boca Livre que sejam diretamente ligadas aos chamados setores produtivos (como se só eles produzissem, e ainda por cima quem produz alguma coisa são os empregados deles). Isto inclui não só as festas de fim de ano empresariais, como os jantares e os almoços profissionais, e até a horrenda instituição dos cafés da manhã de negócios.

Realmente, se há uma refeição que merece sagrados conforto e privacidade, é o café da manhã. Ele existe para ser saboreado em casa, com muita calma, talvez de pijama, ou, na pior das hipóteses, com roupa bem confortável. Sair de casa, ou mesmo do hotel, em jejum, para discutir negócios, é algo revoltante, que deveria ser proibido pela saúde pública. Se for de gravata, pior ainda, mas quem se dispõe a usar esse sufocante adereço já não tem mesmo muito apego ao conforto.

Recebi, a propósito, o seguinte comentário do velho amigo Manuel Rui Pontes:

Basileu, estás a reclamar de barriga cheia, literalmente. Menos-mal quando o pequeno-almoço a negócios é em países onde essa refeição é farta nos hotéis, como o Brasil, a Alemanha, os Estados Unidos ou a Inglaterra. Pior era cá em Portugal, e também em Espanha, França e Itália, onde o pequeno-almoço, mesmo em hotéis melhores, se resume a um café com leite, um cacete, manteiga e, quando muito, geleia. (E atenção, brasileiros: cacete, para nós, é um pãozinho!) Mas a americanização da Europa pelo menos tem servido para melhorar os desjejuns dos hotéis nos países euro-latinos.

Boca Livre e Romance

Consulta-nos uma leitora:

Concordo totalmente com o professor Basileu a respeito do café da manhã... gostaria de frisar a importância social deste, inclusive da conotação sexual que tem o “café na cama”, sempre que é mostrado em filmes, novelas e até em livros. Talvez seja um resquício da época em que o homem “comia” e depois era a vez da mulher, cada um provendo sua parte no relacionamento. Talvez não tenhamos mudado tanto assim, já que ainda cabe ao marido o papel de provedor e a mulher o papel de defender a toca, apesar de todo o avanço feminista. Gostaria de aproveitar a deixa e pedir ao ilustre professor que discorra um pouco sobre a importância da boca livre nos relacionamentos românticos... que ao meu ver seriam o ponto mais delicado de uma boca livre. Por exemplo, o costume de que o homem pague a conta.

Respondo à leitora que realmente há muita relação. O professor Freiermund disse o seguinte, no Livrinho Dourado:

A mecânica da evolução torna alimentação e sexo indissoluvelmente associados. Um promove a sobrevivência do indivíduo, o outro a da espécie, e ambos as dos genes. Quando essas forças se alinham, os genes multiplicam seu potencial de replicação; e os indivíduos bem sucedidos nesse alinhamento passam esse traço para as gerações futuras.

Não admira, pois, que ao longo dos milênios, o elo entre cama e mesa tenha adquirido tanta carga simbólica. Refletida, inclusive, no uso de termos alimentares como metáforas sexuais, que ocorre em muitos idiomas.

Conforme muitos estudos eleutrostomáticos, o investimento dos caçadores primitivos em Bocas Livres para a comunidade retornava de várias maneiras, e uma delas era a colheita de fêmeas de boa parição. De reforço em reforço dos padrões genéticos, consolidou-se ao longo da História a textura das relações primitivas, na qual o homem é tradicionalmente patrocinador de Bocas Livres, e a mulher, usuária.

Naturalmente, há variações. Sendo animal social, o homem é usuário das Bocas Livres dos amigos, vizinhos, colegas e aliados, embora sempre se espere dele seu quinhão de patrocinador. A mulher, por outro lado, quando avança de status a ponto de tornar-se matriarca, marca essa poderosa posição com as Bocas Livres mais memoráveis, principalmente porque matriarcas costumam sobressair-se pela qualidade da culinária, ou comandar cozinheiras que o façam.

Mas o relacionamento mais decisivo e fundamental, que é o relacionamento a dois, o par romântico, permanece, até os dias de hoje, como the ultimate Free Lunch. No mais das vezes, como o macho como patrocinador e a fêmea como usuária, embora haja inversões ocasionais, e o padrão se observe mesmo em casais homossexuais.

Naturalmente, como toda Boca Livre, só é de graça na psique das partes. E sobre as maneiras de retorno, acho que não preciso elaborar mais.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Mais Método Xenoetológico

As Navalhas Xenoetológicas

É forçoso reconhecer que o método xenoetológico difere das ciências mais estabelecidas, em alguns particulares. Ciências como a Física, a Química, a Biologia e tantas outras, se pautam pelo Princípio da Navalha de Occam, também chamado de Princípio da Parcimônia. Formulado pelo filósofo inglês William of Ockham, também conhecido como Occam, esse princípio tem sido citado como Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (Entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade), ou como Pluralitas non est ponenda sine neccesitate (A pluralidade não deve ser proposta sem necessidade), ou ainda Frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora (É inútil fazer com mais o que pode ser feito com menos). Na formulação de Isaac Newton: We are to admit no more causes of natural things than such as are both true and sufficient to explain their appearances (Não devemos admitir mais causas das coisas naturais que as necessárias e suficientes para explicar suas aparências). Ou. finalmente, como dizem os cientistas modernos: Entre duas teorias que fazem exatamente as mesmas predições, a mais simples deve ser preferida.

Ao contrário do que às vezes se pensa, a Navalha de Occam não é parte integral do método científico, mas apenas uma heurística que ajuda o cientista a escolher entre caminhos de pesquisa. Em algumas ciências, como a cosmologia e a psicologia, as explicações são quase sempre mais complexas do que o esperado. Fôssemos aplicar Occam literalmente à xenoetologia, provavelmente ficaríamos sem material de estudo. Exatamente por serem inusitados, os fenômenos xenoetológicos também desafiam o Princípio da Parcimônia. Por isso, os xenoetólogos se vêem compelidos a adotar uma variante que não escolha preferencialmente as elucidações mais triviais.

Fomos buscar tal alternativa em uma ciência irmã, a psicanálise, na forma da Navalha de Freud: Entre duas teorias que fazem exatamente as mesmas predições, a mais interessante é melhor, desde que minimamente plausível. Assim, em lugar se contentar em verificar se o paciente está deprimido por problemas no emprego ou por dor de corno, o terapeuta pode tecer hipóteses sobre problemas na infância, de preferência de natureza sexual. A hipótese será não verificável, de qualquer jeito, mas dará oportunidade a que o paciente fale ainda mais de si, o que, no final das contas, é o que ele está querendo mesmo. Como bônus, ao falar de si, o paciente oferece mais material ao analista, renovando o ciclo. Pois bem. Com a xenoetologia, funciona do mesmo jeito.

A Navalha de Freud é aplicável em outras ciências e técnicas, todas de altíssima respeitabilidade. Por exemplo, na economia política, em todo o espectro ideológico, do neoliberalismo ao marxismo. Ou no jornalismo: por exemplo, para explicar o mesmo fenômeno (dinheiro recebido por um político), a teoria mais complexa (compra de votos parlamentares, que é corrupção brava) rende mais matéria do que a mais simples (contribuição clandestina de campanha, irregular, mas relativamente corriqueira).

Já a literatura, o cinema e as crenças em geral ficam com a Navalha de Homero: semelhante à Navalha de Freud, mas eliminando-se a cláusula minimamente plausível. Aí valem intervenção dos deuses, mágica, milagres, em suma: você decide. Interessa apenas manter o interesse, seja do leitor, espectador ou crente.

Recentemente, porém, a IXA (International Xenoethological Association) reconheceu a diferenciação entre os crentes esotéricos e os convencionais. Para os esotéricos, não basta que a alternativa escolhida seja interessante; aliás, isso nem é considerado tão importante. O que eles realmente preferem é a hipótese mais absurda, ou esdrúxula; não importa que tal tipo de hipóteses nem seja tão interessante, como muito bem o sabem os escritores (com a possível exceção dos humoristas de estilo besteirol).

Daí a necessidade de se definir uma Quarta Navalha, mais alinhada com as demandas do pensamento esotérico. Houve muita discussão sobre quem seria homenageado com a nova Navalha, já que os candidatos abundam. Os nomes mais cotados eram os de Erich von Däniken, Zecharia Sitchin e David Icke. Icke foi um candidato fortíssimo, pelo inusitado extremo de suas teses sobre os reptilianos, o que leva até crédulos moderados a serem um pouco cético. Erich von Däniken, por outro lado, não é tão absurdo quanto os outros dois, e perdeu pela timidez. Ganhou Sitchin pelo critério de aceitação entre os crédulos e roupagem pseudocientífica na Zona de Cachinhos Dourados: just right. Um brinde à Navalha de Sitchin!

Os Efeitos Xenoetológicos

Tal como a parapsicologia ou, pode-se até dizer, a maior parte das ditas ciências humanas, a Xenoetologia é obrigada, na maior parte das vezes, a tratar com resultados reprodutíveis. Daí decorre que geralmente suas fontes são anedóticas; não necessariamente no sentido humorístico que confere a esse termo, mas no sentido adotado em inglês, ou seja: narrativa de um incidente isolado. Ainda que fora dos rigores estatísticos da metodologia científica padrão, é melhor que nada, como bem os sabem os engenheiros de software e muitos outros profissionais técnicos, que há décadas vivem de tais dados, à falta de quem patrocine experimentos controlados relevantes.

Forçado a extrair informação de narrativas nem sempre verificáveis, o xenoetólogo deve, pelo menos, precaver-se contra alguns efeitos insidiosos, que ameaçam corromper o mínimo de verdade que as narrativas singulares possam trazer. Se não o fizer, melhor será que se filie a grupos místicos, ou pelo menos adeptos de teorias conspiratórias. Tais grupos partem de observações já duvidosas no nascedouro, para chegar a conclusões infensas ao bom-senso. Aliás, para eles, quanto mais uma teoria passar ao largo do senso comum, mais merecedora de renome, atenção e difusão. Até, quem sabe, crença.

Uma das armadilhas que o xenoetólogo proficiente deve aprender a evitar é o Efeito Rashomon. Refere-se ao famoso filme de Akira Kurosawa, baseado em um conto de Ryūnosuke Akutagawa, e refilmado por Martin Ritt como The Outrage(no Brasil, Quatro Confissões). Em resumo, um bandido assalta um casal, e o marido termina morto. A polícia investiga o crime, e ouve as três primeiras versões: a do bandido, a da mulher, e a do marido (falando através de um médium). Cada uma reinterpreta vários pontos da anterior, deixando o espectador cada vez mais em dúvida quanto à verdade. O mais interessante é que o objetivo de cada narrador não é o de parecer inocente; ao contrário, eles admitem parte da culpa, na medida em que isso contribua para aumentar a respectiva grandiosidade. A versão final é a de alguém que, por acaso, passava pelo local, e não foi visto pelos demais personagens. Segundo este passante, todos eram covardes e incompetentes, e tudo não passou de uma comédia de erros e acidentes.

Agora vejam o dilema do xenoetólogo: se ele aplicar a Navalha de Occam, fatalmente escolherá a versão do passante. Mas esta não envolve comportamento inusitado algum: apenas boa e velha estupidez humana. Já se aplicar a Navalha de Freud terá três belas histórias para contar. Pessoalmente, fico com a versão do marido, que, além de ser a menos óbvia, ainda conta com o apelo ao sobrenatural...

Para finalizar com uma nota erudita, permito-me citar dois críticos:

Rashomon is a brilliant but bleak and very dramatic examination of epistemology, the philosophy of knowledge, the need for certainty and its frail attainment. (Carter B. Horsley)

In the end, we are left recognizing only one thing: that there is no such thing as an objective truth. It is a grail to be sought after, but which will never be found, only approximated. (James Berardinelli)

E resta acrescentar que o Efeito Rashomon já tem um verbete na Wikipedia.

Também na categoria, digamos, epistemológica, existe o Efeito Elefante. Vem de uma velha fábula indiana, segundo a qual cinco cegos encontraram um elefante, pela primeira vez na vida. O primeiro apalpou a barriga do elefante, e disse que um elefante era como uma parede. O segundo abraçou uma perna, e disse que o animal era como um tronco de árvore. O terceiro pegou em uma orelha, e concluiu que o bicho era como uma ventarola. O quarto pegou na tromba, e disse que todos os outros estavam errados: um elefante, na realidade, era uma espécie de enorme cobra. O quinto pegou no rabo, e disse que o quarto tinha chegado perto, mas o elefante era, mais precisamente, como uma corda.

A propósito, sempre que se conta esta fábula, há um engraçadinho por perto, para perguntar sobre um sexto cego, e outra possível parte da anatomia elefântica. Vamos passar sem essa.

Tal como o Efeito Rashomon, o Efeito Elefante gera diferentes interpretações do mesmo fato. Mas este último é menos sofisticado: cada variante reflete uma visão (?!) que poderíamos de objetivamente parcial, causada por informação insuficiente sobre o assunto em análise, enquanto no Efeito Rashomon cada versão é subjetivamente parcial, distorcida pela influência dos interesses de cada narrador. Em diferentes graus e combinações, ambos costumam estar presentes em discussões inconsequentes e não-conclusivas, seja no botequim ou no Orkut.

O Efeito Elefante também já tem verbete na Wikipedia.

O filme Deu Louca na Chapeuzinho é um exemplo de Efeito Rashomon para crianças. Em que pese a longa tradição cinematográfica do Efeito Rashomon, desde o filme que originou o nome do efeito, até o recente Herói, uma reflexão mais profunda me levou a concluir que, no caso, trata-se do Efeito Elefante. Com efeito (sem intenção de trocadilho infame), as diferentes versões da história, narrados por Chapeuzinho, pela Vovó, pelo Lobo e pelo Lenhador, não são alternativas, mas complementares, pois nenhuma delas desmente as outras, no todo ou em parte.

A tríade de efeitos epistemo-xenoetológicos é completada pelo Efeito Palimpsesto. Refere-se aos antigos pergaminhos nos quais a escassez e alto do custo do material fazia com que os textos antigos fossem apagados e sobrescritos. Textos pagãos, por exemplo, eram sobrescritos por escrituras cristãs. Posteriormente, descobriram-se técnicas para recuperar as camadas inferiores dos manuscritos. Alguns exemplos do Efeito Palimpsesto:

1. No livro Contato, Carl Sagan narra como uma civilização alienígena usa várias camadas de significado para embutir mensagens aos terrestres. Boa parte do brilho de raciocínio do livro foi perdida na versão cinematográfica, em parte pela tentativa de fazer média com as religiões. Mas isso é assunto para outra discussão.

2. O filme Herói, de Zhang Yi-mou, frequentemente comparado a Rashomon, é na realidade um exemplo do Efeito Palimpsesto. As várias versões contadas pelos personagens não são variantes da mesma história, mas sucessivas aproximações, cada vez mais reveladores das reais intenções e motivações deles. Os personagens não são gente comum e egoísta como os de Rashomon; ao contrário, todos os protagonistas só querem o bem do Povo e a felicidade geral da Nação. São as diferentes interpretações do que isso signifique que os levam a ocultar ou deformar partes da verdade.

3. O filme La mala educación, de Almodóvar, é outro exemplo. Aqui, ao contrário de Herói, nenhum dos personagens é boa bisca, embora nenhuma seja completamente mau: nem mesmo o padre pedófilo. Em termos práticos, ganha aquele que sabe tomar melhor partido de cada uma das camadas da história.

Modestamente, eu mesmo investiguei o efeito na Divina Comédia, conforme provo em A Grande Fênix. As duas primeiras camadas são óbvias, desde a época da publicação: a alegoria moral e religiosa, no topo, e, logo abaixo dela, o comentário sobre a política italiana da época, com um apelo à unidade nacional. O que eu mostrei foi que certa modelo que listou a Comédia entre seus livros preferidos, por gostar de literatura engraçada, tinha muito mais razão do supõem os que riram dela por tal observação. Pelo menos quanto ao cântico do Inferno, mostrei, com provas abundantes, o intencional objetivo cômico do Alighieri. Mas a Ordem da Grande Fênix alega existir ainda uma quarta camada de significado oculto...

No Efeito Palimpsesto, a narrativa se apresenta em sucessivas camadas; na medida em que se raspa cada camada, emergem mais alguns aspectos até então escondidos. De certo forma, pode-se dizer que o Efeito Palimpsesto se aproxima da verdade por via vertical, enquanto os efeitos Rashomon e Elefante apresentam alternativas horizontalmente dispostas... Em conseqüência, o Efeito Palimpsesto é o mais sofisticado, e o mais difícil de reconhecer.

Talvez por isso, não tem ainda verbete na Wikipedia. Vou pensar no caso.