quinta-feira, 26 de abril de 2007

Citações do Livrinho Dourado – III

Os Casamentos

Por que tantas pessoas, na maioria de pouca ou nenhuma religiosidade, passariam uma ou duas horas em um templo superlotado, para ouvir um clérigo, basicamente, anunciar a um casal que, daqui em diante, podem fornicar com a benção celestial? Claro que é pela boca livre posterior, cuja fartura será proporcional ao bolso e ao ego dos pais da noiva. Claro também que os espertos aparecem apenas no fim da cerimônia, a fim de, pela conspícua presença na fila dos cumprimentos, validarem o acesso ao festim.

Em casamentos, a voracidade dos convivas é notória desde a Antigüidade, e a sede, mais ainda. Tanto é assim, que, segundo os Evangelhos, o primeiro milagre de Jesus consistiu em resolver o problema de um casamento onde o vinho tinha acabado.

Os Aniversários

Não considero a maioria dos aniversários como forma de Boca Livre, no sentido mais estrito. Isto porque, em determinado grupo de familiares e amigos, na média, ao longo de um ano, todos oferecem festas e todos ganham presentes. É um jogo de soma zero, menos para os comerciantes. Admito, entretanto, que certos aniversários possam adquirir conotações de Boca Livre, desde que o valor do evento, tal como percebido pelo usuário, seja significativamente superior ao numerário gasto no presente. Nesse caso o convidado passa a sentir o gostinho de estar levando vantagem, ingrediente psicológico essencial à Boca Livre.

Os Negócios

As festas de fim de ano das empresas são certamente um tipo de Boca Livre muito apreciado, pois dão aos funcionários o gostinho de, pelo menos uma vez por ano, estarem levando alguma vantagem às custas do patrão. O atual paroxismo capitalista tende a sufocar as formas tradicionais de Boca Livre, enquanto fomenta a Boca Livre corporativa. Boa parte de meus seminários se destina ao treinamento de executivos. Eles procuram na Sociologia Eleuterostomática, em primeiro lugar, um bom desempenho em todas as modalidades de Boca Livre que sejam diretamente ligadas aos chamados setores produtivos. Isto inclui não só as festas de fim de ano empresariais, como os jantares e os almoços profissionais, e até a horrenda instituição dos cafés da manhã de negócios.

domingo, 22 de abril de 2007

Citações do Livrinho Dourado – II

A Idade Moderna

Veio a Idade Média, e depois a Idade Moderna, e as cortes dos reis e de potentados menores passaram a funcionar como bocas livres permanentes, com o grau de magnificência permitido pelas posses e pelo poder de cada governante. Porque iria um nobre francês assistir às solenidades de defecação do Rei Sol, senão pelo conseqüente privilégio de passar a existência degustando os acepipes e vinhos de Versalhes?

Quando preciso de um exemplo realmente chocante do que as pessoas estão dispostas a fazer por uma Boca Livre, menciono as cerimônias de defecação real em Versalhes. Patrocinadores de Bocas Livres, atenção: não exijam menos do que isso de seus convidados; caso contrário, eles não os respeitarão.

A Era Contemporânea

No mundo contemporâneo, a Boca Livre continua a atrair pessoas como a lâmpada atrai mariposas. Ricos e famosos dependem das Bocas Livres para se manterem presentes na mídia, principalmente nas revistas de consultório de dentista. Recém-ricos e recém-famosos dependem da Boca Livre para obter a homologação de seu novo status. Ex-ricos e ex-famosos continuam a penetrar nas Bocas Livres que conseguem, para tentar retornar aos círculos dourados, mesmo sentindo a agridoce saudade dos bons tempos. Dante disse que nessun maggior dolore che ricordarsi del tempo felice nella miseria, mas a dolorosa lembrança do tempo feliz é bem anestesiada por uma Boca Livre caprichada.

Enfim, aspirantes a ricos e famosos devem freqüentar as Bocas Livres como estágio probatório indispensável. No início da carreira, devem fazer por onde serem convidados para as Bocas Livres mais promissoras; uma vez que tenham adquirido fortuna ou fama suficiente, passam a ser recém-ricos ou recém-famosos, recaindo-se em um dos casos anteriores.

A Democracia

Nos tempos modernos, a Boca Livre globalizou-se, profissionalizou-se e democratizou-se. Ela existe através dos almoços de negócios dos executivos, dos banquetes e coquetéis dos congressos científicos, dos vernissages dos artistas plásticos, das noites de autógrafos dos escritores. Não é exclusividade dos privilegiados; conforme o lugar, os grupos sociais das periferias urbanas se congraçam em torno de churrascos, feijoadas, mocotós, macarronadas ou maioneses, e dos correspondentes em outras culturas. Ai do político moderno que não se dispuser a degustar a maionese e a farofa do eleitor e, vez por outra, os mais ambiciosos têm que arriscar até uma buchada de bode.

Nota de Basileu Xilóforo: os nomes das iguarias foram adaptados a nossa cultura. No original inglês, o professor Freiermund se refere a pratos populares anglo-saxônicos. Adotei a buchada como substituto do haggis escocês.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Citações do Livrinho Dourado – I

A Pré-História

Um dos primeiros antropóides a usar armas abateu um mamute e chamou todos os parentes, vizinhos, amigos e amigos dos amigos à primeira das Bocas Livres. O caçador de mamutes obteve retorno na forma de influência, alianças e fêmeas de boa parição, propagando seus genes e perpetuando a estirpe. Bem nutridos, os comensais da boca livre pré-histórica também se perpetuaram, reforçando o que se denomina eleuterostomatotropismo: a irresistível atração da Boca Livre. O processo seletivo refinou as próprias bocas livres: os que sabiam fazer o fogo podiam oferecer quitutes de carne cozida, e as bocas livres destes eram as mais disputadas: A Boca Livre também é motor do progresso técnico.

A Antiguidade

Os nômades superavam os caçadores porque podiam oferecer carne de bois e carneiros, mais macia que as rijas carnes de caça, principalmente quando ainda não se dominava de forma segura a técnica do faisandé. Os agricultores por sua vez superaram os nômades, pois podiam oferecer o pão e outros derivados dos cereais, e principalmente a cerveja e o vinho. Desde então, o álcool tornou-se ingrediente quase obrigatório da Boca Livre.

A partir daí, a Boca Livre tornou-se elemento indispensável do tecido social dos agrupamentos humanos. Através das idades, podemos identificar os estágios da Boca Livre em cada sociedade: os grandes festivais dos gregos, manipulados por seus astutos políticos, fossem tiranos ou democratas; os muitos episódios bíblicos de Boca Livre; o pão e circo com que as elites romanas sustentaram seu Império por tantos séculos.

Pão e Circo

Tal como ocorreu nos campos político e jurídico, permanece até hoje a concepção romana da Boca Livre, centrada no panis et circenses. O pão sem circo jamais se caracteriza como Boca Livre: ninguém aplicaria este termo a um sopão de uma organização filantrópica. O circo é que contribui o ingrediente lúdico e prazeroso, necessário ao fascínio da instituição. Mas, ao longo dos séculos, o conceito muito evoluiu. A plebe romana precisava do sangue dos gladiadores e dos cristãos. Hoje, o lado circense atingiu um nível de refinamento e abstração que beira o zen: a Boca Livre se tornou auto-referencial. O próprio evento é o espetáculo; o salão de festas é o picadeiro; o ver e ser visto é a performance.

O aspecto lúdico explica também por que as melhores Bocas Livres são aquelas em que se penetra sem convite.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Arroz de frango

Receita

2,5 kg de sobrecoxas de frango

Pimenta do reino preta

Sal de alho

1 cebola

1 litro de água

2 cubos de caldo de galinha

2 colheres de sopa de óleo

1 pedaço de raiz de cúrcuma (uns 3cm)

500g de arroz para risoto

50g de manteiga de garrafa

2 tomates

3 molhos de coentro

1 molho de salsinha

30g de rapa de manteiga de garrafa

Lavar as sobrecoxas, que devem ser de primeira qualidade, de preferência do tipo light, do qual não é preciso retirar a gordura. Temperar com a cebola em pedaços, o sal de alho e a pimenta do reino, abafando por uma hora. Retirar a cebola, batê-la com um pouco da água, no liquidificador, e levar à fervura, juntando os cubos de caldo de galinha. Picar o tomate, a salsinha e o coentro. Fritar as sobrecoxas no óleo, até que comecem a dourar; reservar. Cortar a raiz de cúrcuma em fatias finas e fritar no mesmo óleo. Juntar a manteiga de garrafa e fritar o arroz. Juntar as sobrecoxas, o tomate, a salsinha e o coentro, misturando sempre. Juntar o caldo para cozinhar o arroz. Na hora de servir, jogar por cima a rapa de manteiga de garrafa.

Acompanhamentos

Um legume discreto; por exemplo, abobrinha picada com tomate, alho e manjericão, embrulhada em papel de alumínio, e assada no forno.

Vinho

Por exemplo, um bom Carmenère, servido a cerca de 16ºC.

Sobremesa

Sugere-se uma torta gelada de limão, acompanhada de um cálice de vinho de sobremesa.

Comentários

Esta é uma versão ligeiramente italianada de um dos pratos mais tradicionais do Piauí, o arroz com capote. Capote é galinha d’angola que, sendo realmente uma avis rara no sudeste, foi substituída pelas sobrecoxas de frango. Para que a substituição seja válida, as sobrecoxas devem ser do tipo de qualidade especial, já disponível em supermercados. Pelo visto, não falta muito para chegarmos ao frango de denominação controlada, como o poulet de Bresse. O prato original é feito com arroz comum, mas fica melhor com arroz próprio para risoto, de tipo italiano.

Manteiga de garrafa pode ser encontrada em mercearias que vendam produtos nordestinos. Mais difícil é encontrar a rapa da manteiga; em último caso, substitua-se por um bom parmesão ralado, tornando o prato ainda mais italianado. Quanto à cúrcuma, é mais comum encontra-la em pó; mas o pó tem apenas a cor, enquanto a raiz preserva o sabor. Em muitos lugares é vendida com o nome de açafrão, mas o açafrão verdadeiro, de origem espanhola, é formado por estames; a cúrcuma, de origem indiana e usada como base dos pós de curry, é parecida com o gengibre, de quem é parente.

domingo, 8 de abril de 2007

O Livrinho Dourado

A Sociologia Eleuterostomática tem recebido manifestações de gratificante reconhecimento, por parte do público. Um exemplo é este testemunho de uma participante de nossa antiga Comunidade de Comportamentos Inusitados:

Para mim, a Ciência da Boca Livre parece muito séria sim, porque, na minha humilde opinião, está no âmago das relações sociais. Não existe sociedade que não celebre a Boca Livre, de alguma maneira. Quanto ao principio de que não existe refeição gratuita, não imagino nada socialmente mais verdadeiro; um exemplo simples e conhecido é o reles aniversário infantil... Vá lá numa festinha dessas sem presente, para você ver... Vai ser o vilão, o mal educado... Quanto mais eu reflito nessa teoria, mais eu vejo o quanto nós somos primitivos, ainda...

Por outro lado, economistas liberais, talvez invejosos do sucesso do professor Freiermund nos círculos empresariais, às vezes criticam o fundamento basilar da Sociologia Eleuterostomática, ou seja, o Princípio Fundamental da Boca Livre: Boca Livre, todo mundo gosta. Para esses críticos, o PFBL (em inglês, FPFL, Fundamental Principle of the Free Lunch) contradiz o chamado Princípio da Inexistência de Almoço Grátis (PIAG; em inglês, NFPL, No-Free-Lunch Principle). O ilustre Professor Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia, é geralmente citado como o autor do PIAG; pessoalmente, acredito que tenha sido formulado pelo escritor de ficção científica Robert Heinlein, na forma TANSTAAFL (isto é, em inglês caipira: There ain´t such thing as a free lunch).

Segundo o Professor Freiermund, não há contradição alguma. Esses princípios funcionam em escalas completamente diferentes, como acontece as Físicas Clássica e Quântica. O PFBL trata de fenômenos individuais, financeiros e de curto prazo; TANSTAAFL é aplicável a problemas coletivos, econômicos e de longo prazo.

Para dirimir essas e outras dúvidas, o Professor consolidou sua Ciência em uma alentada coleção de vinte e sete volumes, a Einführung in die theoretischen Grundlagen der Kostenlosenessenswissensschaft (Tradução literal: Introdução aos fundamentos teóricos da ciência do comer de graça). Para os profissionais, o nível de rigor teórico e de completeza dessa obra é essencial.

Entretanto, para os interessados apenas nas aplicações práticas, o grande mestre usou seu notável poder de síntese, e produziu, a pedido de seu editor americano, uma edição popular do compêndio. Com o auxílio de um aluno americano de pós-graduação, conseguiu resumir os principais aspectos práticos da Sociologia Eleuterostomática em um pocket book destinado a executivos e amadores interessados, intitulado The Free Lunch Users' Guide.

O editor do livreto escolheu uma capa de tom dourado, destinado a lembrar a opulência real ou imaginária, sempre associada com a Boca Livre. Não demorou para que viesse a ser conhecido como O Livrinho Dourado do Professor Freiermund, por analogia com O Livrinho Vermelho do Presidente Mao ou o O Livrinho Verde do Aiatolá Khomeini.

Colocarei, nas próximas crônicas, algumas citações do Livrinho Dourado, em tradução de minha modesta lavra. Oxalá sirva para dissipar dúvidas quanto à natureza e métodos dessa importante Ciência.

domingo, 1 de abril de 2007

A Ciência da Boca Livre

Hoje quero reapresentar o professor Johann Sebastian Freiermund, meu ilustre mestre na Sociologia Eleuterostomática, ou Ciência da Boca Livre. O professor já é conhecido dos leitores de A Grande Fênix e dos participantes da primeira Comunidade de Comportamentos Inusitados. Nada melhor que uma pequena biografia escrita pelo próprio professor, que me limito a traduzir:

Sou professor na Universidade de Heidelberg, onde tive a satisfação de orientar Basileu Xilóforo em um de seus pós-doutoramentos. Também ministros seminários executivos em todo o mundo, treinando tanto patrocinadores quantos usuários de eventos de Boca Livre. Esses eventos me ajudam tanto a explicar essa ciência fascinante aos leigos interessados, quanto a conseguir algum financiamento adicional para minha pesquisa. Os brasileiros estão entre os praticantes mais entusiásticos de Boca Livre; por isso, sou convidado freqüentemente a apresentar meus seminários nesse país fascinante. Como a maioria de alemães, gosto de cerveja, futebol e mulatas, embora eu seja um pouco velho para fazer muita coisa em relação ao último item. Devo confessar que acho o carnaval demasiadamente agitado para mim, seja no Rio, em Nova Orleãs ou em Munique. O mesmo vale para o samba, ou, aliás, para as polcas de cervejaria. Quanto para à feijoada, décadas de Boca Livre estragaram um tanto meu estômago e paladar. Conseqüentemente, quando não estou em atividades profissionais de Boca Livre, prefiro salgadinhos e aperitivos, tais como se pode achar em Imbisse alemães e em botequins brasileiros.

Infelizmente, o exercício dedicado da profissão trouxe ao mestre desagradáveis seqüelas estomacais, que, entretanto, tiveram um resultado também inusitado: o professor consome, quase exclusivamente, comida de botequim. Não só por esse sacrifício pela Ciência, mas por inúmeras outras contribuições, deu-se seu nome ao Princípio de Freiermund, o mais importante de toda a Sociologia Eleuterostomática. Como diz ele:

Meus colegas foram muito amáveis em batizar esse princípio com meu nome, mas, de fato, apenas formalizei uma noção intuitiva e bem conhecida. Prefiro chamá-la de Princípio Fundamental da Boca Livre: A humanidade tem irresistível compulsão e fascínio indomável por refeições gratuitas. Dizendo de outra maneira, em termos mais populares: Boca Livre, todo mundo gosta. Tal atração irresistível é chamada eleuterostomatotropismo. Provavelmente, apareceu no alvorecer da humanidade, quando os primeiros caçadores mataram uma caça muito maior do que eles e sua família imediata podiam comer; digamos, mamutes ou preguiças gigantes. Assim, convidaram parentes, vizinhos, amigos e amigos dos amigos, e deram festas para partilhar aquela carne. O retorno do investimento veio de diversas maneiras: convites para eventos similares, alianças, redes da influência e fêmeas com bom potencial de parição. Tudo isso aumentou as possibilidades da sobrevivência para os genes desses caçadores, reforçando a propensão á Boca Livre, como patrocinadores ou usuários.

Os xenoetólogos consideram a Sociologia Eleuterostomática com uma das principais ramificações de sua ciência, com o mesmo nível de rigor científico. O nome dessa especialidade deriva das palavras gregas ελεύθερος (livre) e στόμα (boca). A primeira palavra lembra o nome próprio Eleutério, que significa livre. A segunda, em caracteres latinos, fica stoma, plural stomata. Estomatologia, por exemplo, é uma disciplina da Odontologia.